Em decisão liminar monocrática na
Reclamação 14.145, o ministro do STF Carlos Ayres Britto suspendeu o
concurso público para cargos da carreira policial federal até a
republicação dos editais com a previsão de reserva de vagas para
deficientes. A ordem judicial tem provocado debate sobre a presença de
deficientes no universo policial, porque o primeiro sentimento é o de
que as demandas inerentes à atividade policial não se coadunariam com
impedimentos corporais e restrições de funcionalidades e habilidades que
signifiquem deficiência, mesmo após adaptações ambientais e remoções de
barreiras. Para o Ministério Público Federal, no Recurso Extraordinário
676.335 que deu ensejo à interposição da Reclamação, a omissão nos
editais é uma falha inconstitucional por violação aos princípios da
reserva de vagas, da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da ampla
acessibilidade ao trabalho, todos previstos na Constituição Federal.
Sem dúvida, os argumentos do MPF
sinalizam que, muito mais que uma questão dos domínios da saúde,
deficiência é uma questão de justiça. No entanto, a generalidade e a
abrangência dos argumentos denotam que as peculiaridades do caso foram
ignoradas — e é exatamente sobre isso que o STF deverá se manifestar
para decidir.
A reserva de vagas em concursos
públicos é uma política pública de ação afirmativa, que segrega para
promover a inclusão de deficientes no mercado de trabalho. Ser
deficiente é condição para pleitear o benefício. A reserva de vagas é
medida de natureza similar às cotas em universidades, e por isso se
ampara em fundamentos comuns, como o interesse na diversidade e a
promoção de oportunidades às minorias políticas para promover as
capacidades humanas e a igualdade. A perspectiva dworkiana de justiça
permite afirmar que é o insulto do desprezo pela diferença que também
justifica ações afirmativas de reserva de vagas.
O princípio da reserva de vagas
não tem aplicação isolada e invoca interpretação conjugada com os demais
princípios afetos ao tema, em especial, com o princípio da igualdade.
Nesse ponto, especificamente no caso do concurso para a carreira
policial, o argumento do MPF sobre violação do princípio da reserva é
inconsistente, pois inexiste ruptura da igualdade por razões de
discriminação negativa — para marginalizar, oprimir e apartar do
convívio social.
A não previsão de reserva se
justifica por motivos de segurança individual do futuro policial, de
padronização de ação policial e de garantia de treinamento operacional
sem distinção para todos policiais, que devem estar de prontidão para
prestar serviço cujo risco dispensa prova, ainda que estejam lotados em
funções burocráticas e administrativas. Aliás, o exercício dessas
funções não dispensa o policial do porte de arma nem o isenta de
obedecer as ordens de missão policial para cumprir mandados de busca e
apreensão, prisão cautelar e/ou flagrante e incursões em campo.
A discriminação é positiva,
porque não se alimenta de abominável desprezo pelo deficiente, ao
contrário. É calcada em motivos determinantes de organização para a
sobrevivência da pessoa no universo policial, em que aptidões e preparo
intelectual são fundamentais, mas não autorizam subjugar treinamento
físico e de tiro que aumentem as chances de preservar a integridade de
policiais, seja no âmbito das instalações da repartição ou delegacia,
seja em operações policiais, intervenções em logradouros públicos e
privados e investigações de baixo risco.
O argumento da igualdade não se
sustenta a qualquer custo, e não é toda discriminação que gera
ilegalidade. O STF também deverá ponderar em que medida o argumento do
princípio da dignidade da pessoa humana, como poderosa afirmação moral
para os direitos humanos, pode adquirir contornos de armadilha,
desamparo e vulnerabilidade aos deficientes no exercício da profissão
policial — esse princípio não é um superprincípio. Essa é uma
expectativa legítima da sociedade, inclusive porque o Poder Judiciário
deve ser provocado a tomar decisões que reforcem a crença na legalidade,
sem enfraquecer a crença no sentimento de justiça, que deflui da
perfeita sintonia da decisão às particularidades do caso concreto.
O caso do concurso para cargo
policial compelirá o STF a considerar os desdobramentos práticos de sua
decisão, inclusive porque a imposição da reserva de vagas para cargos
policiais não permite deduzir que os candidatos deficientes estarão
automaticamente liberados dos testes físicos de aptidão e dos testes
médicos, que têm natureza eliminatória. A decisão do STF deverá
inspirar-se na lição habermasiana de que a jurisdição deve satisfazer
condições de consistência e de aceitabilidade racional.
A aprovação no concurso para
policial depende de desempenho em testes físicos, que incluem salto em
distância, corrida, natação e barra dinâmica, inclusive para mulheres.
Candidatos deficientes com impedimentos corporais e restrições de
habilidades motoras provavelmente não atingirão os índices mínimos, em
especial de posse da informação de que alguns não-deficientes não os
alcançam, mesmo em condições favoráveis. Os índices mínimos são elevados
— e recrudescidos durante o curso de formação na academia nacional de
polícia.
Parâmetros de aferição sobre
aptidão física muito diferenciados ou propostas de isenção absoluta de
testes físicos para deficientes poderão causar a descaracterização da
natureza do cargo, e, sobretudo, distorção da incidência do princípio da
isonomia entre os futuros policiais. Essa questão é bastante delicada,
até porque já serviu, noutros tempos, como argumento para insinuar sobre
uma inconveniência operacional causada pela presença de mulheres no
universo policial.
Todavia, adaptar critérios de
testes físicos em função do gênero não se aproxima do desafio de
implementar testes físicos para deficientes em concurso público para a
carreira policial, em especial diante da variedade de impedimentos
corporais e restrições de habilidades motoras, sensoriais e cognitivas.
Mesmo que haja isenção de testes físicos, os riscos da profissão serão
iguais para todos, deficientes e não deficientes — mas os deficientes
arcarão, sozinhos, no dia a dia, com o agravante do despreparo
operacional para autodefesa pelo simples fato de ser policial federal.
É inevitável questionar sobre
como serão aplicados os testes e provas de tiro — em que há contagem de
tempo para disparo ao alvo e movimentação — com pistolas,
submetralhadoras e fuzis, entre outros armamentos pesados, durante o
curso de formação. Todo policial federal tem porte de arma funcional e,
ao menos na Polícia Federal, acautela uma pistola semiautomática com
calibre 9mm, que civis não podem portar. Mas não é só. O reconhecimento
da possibilidade de deficientes no universo policial deslocará para o
centro do debate os candidatos-limbo: nem deficientes nem aptos pelo
rigor do teste médico, que também é etapa eliminatória do certame.
Se a liminar do STF for
confirmada pelo Plenário, situações-limite surgirão. Mantidas as
exigências médicas nos termos dos editais, uma pessoa com acuidade
visual igual a 20/50 em um dos olhos e 20/20 no outro é inapta para
ocupar cargo policial. Mesmo não sendo cega por enxergar com os dois
olhos, essa pessoa tampouco é considerada portadora de visão monocular.
Não poderá pleitear, portanto, com base na Súmula 377 do STJ, livre
concorrência dentro da margem reservada aos deficientes.
Não escapa do rigor dos testes
médicos nem a pessoa com desvio acentuado do septo nasal nem quem possua
deformidade congênita com dedo extranumerário em um dos pés, sem
impacto funcional, os quais não são deficientes — nem à luz do Decreto
3.298/1999 nem a partir do critério da desvantagem social trazido pelo
modelo social da deficiência.
Salvo
se houver uma revisão profunda e um abrandamento amplo das exigências
médicas para acesso aos cargos policiais, que elimine o limbo, a
previsão de reserva de vagas causará sérios impasses sobre o que é
exigência justa para acesso à carreira policial, polarizando deficientes
e não-deficientes que apresentem impedimento corporal que não gere
desvantagem social e, portanto, não signifique deficiência.
O argumento da ampla
acessibilidade ao trabalho merece ressalvas. Seja para deficientes ou
não-deficientes, as relações de trabalho representam espaço de proteção e
esfera importante da sociabilidade, além de mecanismo de mobilidade
social. Sem dúvida, a reserva de vagas é uma chance para o deficiente
sair do espaço de subalternidade e de reclusão doméstica em que vive
comumente, muito embora a disputa dentro da margem reservada seja uma
disputa da elite de deficientes — aqueles poucos que podem estudar para
passar nas provas de conhecimento. É evidente que a reserva de vagas
desmistifica o deficiente como sujeito não produtivo. No entanto,
estudiosos do campo sociológico da deficiência questionam o valor de
centralidade dado ao trabalho, e propõem uma reflexão que valorize
aspectos de cidadania menos atrelados à função econômica, inclusive
porque nem todos deficientes, mesmos após reestruturação das relações de
trabalho, remoção de barreiras e ajustes, poderão trabalhar. Em algumas
situações, não poderão desempenhar algumas tarefas, embora possam
executar outras — nem todos os tipos de trabalho estão ao alcance de
todos, deficientes e não deficientes. O STF deverá responder se é
razoável, no universo policial, liberar os futuros policiais deficientes
do exercício pleno da profissão e ponderar sobre o impacto disso em
suas vidas e na atividade institucional.
Não há consenso sobre quais
variações de funcionalidades e habilidades corporais caracterizam
deficiência, e não por acaso são recorrentes os litígios judiciais em
busca da concessão de benefícios previdenciários nesse campo.
Deficiência não é doença, apesar do intenso debate sobre a inclusão de
doenças crônicas como ponte para a experiência da deficiência, como
seria o caso de pessoas em estágio avançado de infecção pelo vírus HIV.
Deficiência é um conceito
complexo que reconhece o corpo com impedimentos, mas que denuncia a
estrutura social que aparta do convívio social a pessoa deficiente. A
construção desse conceito decorre do extenso debate internacional sobre
deficiência, marcado pelo modelo médico e pelo modelo social.
Entre
esses dois modelos teóricos há uma mudança na lógica da causalidade da
deficiência: para o modelo médico, a causa da deficiência está no
indivíduo; para o social, está nos arranjos da sociedade, hostil à
diversidade corporal. A primeira geração de teóricos do modelo social
apregoou uma rejeição ao corpo deficiente, como instinto para promover a
ideia de que a deficiência se explica a partir do contexto social no
qual o sujeito se encontra imerso e não a partir de um fato da biologia
individual. A primeira geração defendeu a premissa da independência como
um valor ético para os deficientes, na tentativa de provar que,
retiradas as barreiras ambientais e sociais e feitos os devidos ajustes
arquitetônicos, os deficientes não experimentariam restrições e
exclusão.
Nos anos 2000, a segunda geração
de teóricos do modelo social mostrou que essa reivindicação era
perversa para os deficientes, pois a atenção ao corpo e o cuidado são um
projeto de justiça necessário em situações de desigualdade de poder,
até porque nem todos arranjos possíveis conseguirão promover a inclusão
em patamar de absoluta igualdade com os não deficientes — o que não
significou abandonar a ideia central da primeira geração sobre
deficiência. Essa evolução teórica nos estudos sobre deficiência pode
servir como inspiração ao STF para o julgamento final da Reclamação
14.145, pois, tal como ocorreu no debate internacional sobre
deficiência, mesmo reivindicações bem intencionadas, como parece ser a
do MPF, podem ter efeitos reversos.
Apesar da repercussão negativa
no andamento regular do certame, a judicialização do debate sobre
deficientes no universo policial tem vantagens: a de dar algum
tratamento de justiça à questão; a de revelar que essa é uma disputa da
elite de deficientes; a de provocar o questionamento sobre quem é o
sujeito deficiente que a sociedade almeja proteger; e a de desnudar como
o fenômeno da deficiência é compreendido pelo STF, algo tão importante
para a reflexão sobre o que é deficiência para fins de operacionalização
de ações afirmativas, como é o caso da política de reserva de vagas
para deficientes em concursos públicos, em geral.
Arryanne Queiroz
é delegada de Polícia Federal, representante da Comissão de
Prerrogativas da Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) e
membro do Conselho Consultivo do Instituto de Bioética, Direitos Humanos
e Gênero.
Fonte: Conjur
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